Um belo texto...
RUBIA DELORENZO (1)
Vai chegar uma nova criança. Tudo gira, em vertigem.Desarruma-se algo. Perde-se o equilíbrio do hábito. A filha agora é mãe, a mãe é também avó, a caçula vira tia.Avós de sangue exultam. Cuidado! É preciso viver da fraternidade, o laço solidário capaz de abrir a roda para que caibam todos. E estabelecer o sentido estendido da partilha: celebrar com outros os frutos do tempo e a estação da vida e respeitar o que é legítimo da justa divisão nas diferenças.Esse é o primeiro tempo da novidade. Depois, é preciso admitir: temos muito trabalho com as sombras, com o que se deu no invisível.Haverá alegria para a filha mulher em seu novo estado de mãe? Guardará ela, com prazer, na memória de seu corpo o fluxo perene dessa ligação? De mãe para filha, perduraram as alianças urdidas nas trocas femininas? Na feitura da colcha de retalhos, com suas dobras tão simétricas e junções irregulares, com seus centros coloridos e com bordas mais tristonhas, os detalhes extravagantes, as dessemelhanças, como conviveram? O gosto jovem e o mais antigo, a sábia lição dos mais velhos e a vontade de inventar? Como tratar o relicário?Mundo novo admirável, estarei dentro, estarei fora? De repente o tempo dilatou-se. De novo, vi a vitalidade do século, a força combativa das gerações, a pulsação apaixonada, a família, a vida, o amor, em desordem. A idéia do tempo em sua dimensão desdobrada se impôs: tempo pródigo, doador, no avesso do tempo odiado, ladrão inclemente, usurpador. Na dádiva inesperada do tempo pressinto esse retorno ao íntimo, ao mais secreto: a queda no túnel de Alice, o tremor, estar caótica, pulsante, desordenada. Paul Klee, certa vez, diante da superfície branca da tela, inibido, ele próprio atingido pelo branco, confessa:"No entanto, permaneço calmo, porque me foi permitido, inicialmente, ser eu mesmo um caos. Essa é a mão materna"(2).A que foi mãe e que foi "trêmula e tímida" pode provar num movimento destemido, a presença do caos agora renovado pela aventura que é, novamente, o estranhamento da filha e o desamparo da criança.Persiste, nesta doação do tempo, a impressão de que se existe calma que apazigua o caos, é porque há algo que permanece.
Abril - 2009
(1) Rubia Maria Tavares Delorenzo é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.(2) Citação feita por J.-B. Pontalis, em Perder de Vista, no último artigo, que dá título ao livro.
Imagem: Paul Klee, mother and Chid, 1938.
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