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A vida vale muito a pena, por uma série de coisas...
Goiânia, Goiás, Brazil
Psicóloga Clínica, formada pela PUC - Goiás. Formação em psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo e Clínica Dimensão de Goiânia. Psicóloga - Comissão Executiva de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Goiás - Secretaria de Estado de Políticas para Mulheres e Promoção da Igualdade Racial.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

AMORTE

Foto romeo and juliet - by: Annie leibovitz

Depois de ler o texto de Roberto Mello, e vendo essa bela foto tirada pela Annie Leibovitz, eu fiquei pensando se resistir ao amor, não é ao mesmo tempo, uma fuga da morte, não somente da morte física, mas também de todos os nossos afetos e desafetos, dos amores desaparecidos e que nunca mais voltarão. Lembrei de uma música do Lulu Santos que diz assim: “Quando um certo alguém, desperta um sentimento, é melhor não resistir, e se entregar”. E resistir ao amor é causa de angústia, perder o encantamento pelas coisas mais simples da vida, como olhar um céu bem estrelado, trabalhar o dia todo com tesão, e chegar em casa da mesma forma e ver quem você ama, abrir a porta pra você, e te puxar para dentro. As pessoas perdem tempo demais se defendendo das suas fragilidades, como se a cura para a dor do amor, fosse endurecer, fechar a porta pro novo entrar. E no texto que se segue, o psicanalista Roberto Mello, cita um neologismo: AMORTE, constituído de amor e morte - não há um sem o outro.
Então o que nos resta diante dessa legitimidade? Bem, seria interessante que cada um pudesse pensar sobre isso...Fica o meu convite...

A MORTE
Por Roberto Mello
- A morte não há - disse um psicanalista, há tempos, no Rio de Janeiro, para uma platéia atônita durante um congresso. Efeito imediato: uma velhinha desmaiou. Foram ver, acudiram, e era uma psicanalista. Burburinho. Quem seria? Qual o nome? Idade? Um copo d'água. Levaram a pobre da velhinha para fora da sala, deitaram-na num sofá. Não, não era um divã. Abanaram, abanaram, trataram com carinho, e ela aos poucos se recuperou. Poder da palavra. Fiquei pensando, não era para subestimar. Poderia ser comigo, com qualquer um. Os gregos antigos sabiam que a palavra cura e mata. Os romanos sabiam que nas assembléias públicas, onde o discurso corria solto, havia sempre aqueles que tinham ataques de epilepsia, até por isso chamada de mal comicial. César era um deles.

Que se diga fica atrás do que se diz naquilo que se ouve, afirmava Lacan, no seu texto O aturdito, o dito que nos deixa aturdidos, a exigir dos analistas o talento da decifração. Posso dizer que você é uma mulher, mas isso não quer dizer que você verdadeiramente o seja. Perder-se no dilema do ser ou não ser é deixar de viver. Trocando o ser pelo haver, desde Freud, os psicanalistas sabem que a morte não há. Quer dizer: ninguém faz a experiência da própria morte. Não há uma entidade, A morte. Enigma. Para nós, a morte é sempre dos outros. O que não impede que num belo dia desapareçamos. Perecimento. Estive aqui, e não estou mais. Sumirei, mas não de todo. Há sempre algum resto. Nem que seja por matéria de fé. Lacan também dizia que a morte era uma pura questão de fé, e que, se não fosse assim, se não acreditássemos que um dia vamos morrer, o peso da existência arrastando-se pela eternidade seria absolutamente insuportável. Ninguém agüentaria um gozo eterno. Mas há os que crêem acreditar nisso, e morrem em vida, como os obsessivos, que não sabem se estão vivos ou mortos, se amam ou odeiam, paralisados pela dúvida improdutiva, alienados na espera, a espera da morte, geralmente de uma figura de autoridade, pai, patrão, mestre, para que então se sintam autorizados a viver. Na clínica, é dos obsessivos o questionamento radical da tragicidade da existência. Hamlet adia o crime por amor e nem sabe se ama. Romeu e Julieta, por amor, antecipam a morte. Sexo e morte estão interligados, nos diz a psicanálise. Dois adolescentes se encontram e se convidam para o coito: vamos brincar de morrer? Daí a legitimidade do neologismo amorte. Em 1998, em Salvador, na Bahia, psicanalistas trataram desse par ordenado, constituído de amor e morte - não há um sem o outro - num famoso congresso.

Em outro congresso, no Rio, discutiu-se sobre a possibilidade de a morte ser uma variedade de sexo. Por mais chocante, escandalosa que seja a aproximação, constatou-se que há um gozo em falar da morte. Se falar de amor é já fazer amor, como dizia Lacan, falar da morte deixa escapar um gozo inesperado, insuspeitado, mas que pode ser captado pela observação de uma crise maníaca que às vezes toma conta dos velórios. A literatura brasileira é rica de exemplos, entre eles algumas narrativas de Jorge Amado. É também da Bahia boa terra que nos vem uma estranha estatística de alta incidência de casos de linchamento, em que grupos se reúnem para fazer justiça com as próprias mãos, rompendo o pacto civilizatório - não matarás - e deixando-se fotografar com um semblante de gozo evidente. A conclusão óbvia é a de que existe um gozo de matar. Somos uns boçais, dizia Caetano numa canção que fustigou os podres poderes que não respeitam nem sinal de trânsito.Aliás, não nos damos conta de que a história de Édipo começou com um acidente de trânsito: Laio, pai de Édipo, fugia de um outro pai, que o perseguia porque não lhe dera autorização para que transasse com seu filho. Laio desrespeitou a lei que regulava a pederastia, velho costume grego. Na pressa, ao passar por uma encruzilhada, seu carro bateu no de Édipo. Discutiram, e Édipo, sem saber quem era seu desafeto, o matou. Fugindo do pai de um menino, Laio morreu nas mãos de seu menino, diz uma das muitas versões do mito tebano, mas nem por isso tomamos cuidado com as discussões no trânsito. Repetição sem fim?

Tesão de matar, tesão de morrer, amorte de mil faces se perpetua ao longo das eras. Sabedora disso, a Igreja católica, com sua sabedoria, instituiu a cerimônia da missa, em que, simbolicamente, o corpo e o sangue de Cristo são devorados. Aplaca-se, assim, uma fome insaciável. Por que se chocar com o mito freudiano do parricídio, o assassinato do pai primordial, do pai da horda, que monopolizava toda forma de gozo, todas as mulheres, crime que está na origem da lei e da civilização? De pai morto a pai simbólico, fundamento civilizatório. Civilização a exigir um novo pacto, um acordo para diminuir o ritmo da destruição da vida, pelo menos para diminuir o ritmo da morte da biodiversidade. Morte gulosa, voracíssima, que nos rouba a água potável, o ar limpo, a chuva criadeira, a terra generosa, e nos torna inimigos do fogo: cientistas apavorados nos advertem para as mudanças climáticas e o aumento crescente da temperatura. Aliança entre ecologia e religião, como propõem alguns cientistas. Será que desta vez vamos? Teocracia à vista. Estaremos advertidos pelo ceticismo do crítico literário Harold Bloom, que, no seu livro Jesus e Javé - Os nomes divinos, não consegue compreender, na sua condição de judeu, o fascínio de um Deus que comete suicídio? O fantasma da morte é imprescindível?

A velhinha que desmaiou - perdeu os sentidos - padeceu de uma frase que abalou seu sistema de crença: suas significações habituais entraram momentaneamente em suspensão, abriu-se uma ausência de sentido. Podemos especular se ela teria sido formada na escola que despreza a pulsão de morte anunciada por Freud em 1920, como uma resposta teórica - e prática - para os insucessos da clínica: por que os sujeitos querem e não querem tratar-se, ao mesmo tempo? O que faz com que subestimem o papel da palavra, recusando a saída possível pela simbolização, dado que o homem não pode não simbolizar? Os budistas nos falam da dor de existir. Que gozo é esse? Remédios são paliativos, ainda que bem-vindos.

Ainda que pretenda eximir-se da responsabilidade do seu sofrimento, o sujeito contemporâneo pode continuar a não simbolizar a morte, delegando a um outro, ao remédio, as decisões cruciais de sua vida? Haveria uma ética para a subjetivação da morte?

Os analistas estariam à altura dessa ética? Não sei de muitos exemplos. Me lembro de um. O ano de 2005 me foi particularmente cruel: desapareceram minha mãe e meu analista. Horus Vital Brazil, que esteve conosco em Goiânia, para algumas jornadas de trabalho, mostrou, pouco antes de morrer, uma serenidade comparável a de Sócrates. Viveu com alegria seus últimos momentos, escrevendo, dando cursos, consolando amigos, parentes, analisantes, aceitando com resignação - porque bem vivera e bem dissera a vida - o seu fim.

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